Os “novos” Les Misérables (2019) do diretor Ladj Ly é o tipo de filme que te dá um baita tapa na cara e ainda te faz dizer um obrigado agridoce. Tratando-se de um lembrete ambulante de que os clássicos nunca morrem – adaptam-se, mudam de rostos, datas, causas e localidades –, mostra que a miséria, não só financeira como humana, ainda prospera, sendo um fantasma inescapável que assola para além das ruas francesas que causam dèjávú em qualquer brasileiro. Basta apenas olhar um pouquinho mais atentamente.Damien Bonnard, Alexis Menenti e Djebril Zonga, então, te dão os óculos.
Já na cena inicial de
créditos, o filme demonstra exatamente qual é sua natureza. As ruas quentes
parisienses do verão da Copa do Mundo pipocam um arsenal de bandeiras
tricolores balançando no ar, inúmeras pessoas gritando, algumas em uníssono,
outras em dissonância, uma porção fardada enquanto outras nem têm camisa, umas
em bares de guetos esquecidos pelo próprio governo, alguns em lugares
históricos. O que importa é que todos estão juntos, torcendo pela França contra
a Croácia, explodindo em êxtase e fogos com a vitória do memorável 4-2. E, logo
em seguida, aparece o título do filme. É uma deliciosa ironia que te vende logo
de cara e não é à toa que o filme ganhou o prix Du jury no Festival de Cannes – a pegada
inteligente é mantida em todo o filme até o final.
Contando com uma ótima
direção, cinematografia e soberba atuação, Les
Misérables (2019) é para qualquer um se chocar com a proposital ausência do romantismo clássico francês
no roteiro, adotando-se, pois, um retrato cru da realidade fria e chocante do
mundo criminal e policial da França, tendo como palco principal Montfermeil, um
distrito do leste de Paris, mesmo local em que Victor Hugo perambulava
escrevendo como contraste. Apesar das cenas iniciais começarem já deixando
qualquer um na ponta do assento, perguntando-se o que está acontecendo, as
cenas seguintes desaceleram bastante, dando mais do que tempo para respirar,
montar o quebra-cabeça dramático e refletir.
Fonte da imagem: razaodeaspecto.com
Acompanhamos Stéphane
Ruiz, “Seboso” [Pento, no original, interpretado
por Bonnard], em sua nova divisão policial com Chris [Manenti] e Gwada [Zonga]
que logo será mais criminosa que os próprios detentos. Acostumado com uma vida
tranquila, familiar e honesta do interior, Ruiz se surpreende ao ver o estado
degradado da cidade que não é mostrada aos turistas: os bairros inundados por
violência doméstica e conflitos de gangues, o tráfico intenso de drogas que
acontece por debaixo de mesas de bares, a prostituição, pobreza extrema em
áreas de refugiados. Todos os personagens, porém, parecem muito bem acomodados
com tal realidade, respondendo às indagações do “Seboso” com piadas e
desconsiderações, arrastando-o junto para o poço da sujeira da corrupção,
afirmando que ele deve seguir a “ordem” estabelecida. A crítica social não
poderia ser mais evidente, mas é narrada com tamanha graciosidade que se torna
difícil ver a abrupta mudança até o clímax.
Apesar do lento núcleo
principal se mostrar bastante complexo em sua dinâmica de poder que vai para além
das normativas legislativas – passando da linha várias vezes, tendo atitudes
abusivas e descaradamente ilegais –, os subnúcleos de personagens que vão
aparecendo são mais simples de serem compreendidos em seus insights. Conhecemos Buzz [Al-Hassan Ly], um pré-adolescente que vive
em um prédio esquecido pelo mundo, mas não pelo abuso policial; Issa [Issa Perica],
um garoto de uma família disfuncional, tóxica e extremamente pobre, que vive
pelas ruas, tentando a sorte;O Prefeito [Steve Tientcheu], responsável por
manter a “harmonia” dentro do bairro enquanto possui uma gangue própria e uma
rede de comércios ilegais, sendo informante e amigo da polícia, e Salah [Almamy
Kanouté], um jihadi que tem uma loja de kebab, adotando e protegendo aqueles em
quem confia, sendo o medo não só da polícia como também das gangues locais.
Fonte da imagem: IMDb
A gangue do Prefeito entra
em conflito com outra, crianças acabam por se envolver e a polícia, que devia
proteger os indefesos e inocentes, acaba por perseguir descaradamente uma
dessas crianças, quase a matando em nome da “manutenção da paz”. O caso inteiro
é gravado e há mais uma perseguição que tenta silenciar a todos os envolvidos,
mas que acaba dando ainda mais voz ao ocorrido. Molotovs são jogados. Montfermeil vê a repetição
de uma revolução. Como esses núcleos interagem entre si e como tudo acontece,
entretanto, deixarei com você, sua criatividade e curiosidade.
Ouso
dizer que o filme acaba tão repentinamente como começa. Sem sombras de dúvidas,
as cenas iniciais e finais são minhas favoritas, mas por motivos totalmente
diferentes. Enquanto a primeira é expositiva, clara e gritando por ironia, a
última é de arrepiar os fios do cabelo, sendo dúbia ao mesmo tempo que é também
crítica; não se trata de uma conclusão, é um convite. Para aqueles que pensam
em ir assistir esperando a repetição exata, clássica e acrônica de um romance de
1800, não vão. Há claras referências ao romance original (um exemplo e dica:
Ruiz é Jean Valjean), mas não é uma história copiada e colada. É, simplesmente,
a história que se precisa do hoje.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O
final do filme é você quem decide. Os miseráveis são nobres enquanto os nobres
são miseráveis. Os miseráveis desgraçados, tanto de bolso e humanidade,
representam a antiga geração, acostumada em seus hábitos grotescos de
segregação, corrupção e comodismo – quem decide o final dessa história são as
crianças, os nobres, o futuro. Se acaba em permanência ou mudança, cabe a quem
está assistindo para definir.
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