01/08/2018

PARADA MUSICAL | REGINA, Um passeio musical - Mallu


   Vamos tornar isso mais pessoal. Já faz algum tempo que eu tenho ficado incomodada por consumir música genérica e robótica. Tentando achar algum verso que não fosse de generalização romântica, ou que tantas pessoas podem se identificar que na verdade não causam impacto em ninguém. Eu sei que indústria fonográfica exige que os artistas estejam constantemente produzindo, de modo que, fica difícil produzir algo profundo com garantia de venda. Então acabei tropeçando no álbum Regina do rapper nILL, e tive uma experiência diferente de tudo que eu já tinha ouvido no rap ou em qualquer música.






  Regina é um dos álbuns mais intimistas que já escutei. O álbum consegue transitar pelo hip-hop, trap, lo-fi e pelo vaporwave de maneira muito orgânica. A obra é dedicada a mãe do rapper e funciona como uma mensagem póstuma sobre a vida no geral. É também de referências dolorosamente atuais. Regina é um espelho dessa geração nascida na modernidade e criada na pós-modernidade.

Fiquei horas conversando comigo mesmo. E calculando os danos e desmoronando sempre. (Faixa: De novo e de novo - Regina)


 

   O Lo-fi (low fidelity), foi criado em oposição ao termo hi-fi (high fidelity). 

      
   Essa prática, geralmente atrelada ao uso de equipamentos sucateados, desafinados, gerando uma paisagem sonora com chiados vem sendo ressignificada desde o final dos anos 70.  O Lo-fi surge em paralelo a produção de mídia através da alta tecnologia. Nestas gravações, ouve-se o chiado da fita excessivamente reutilizada, os pops dos microfones desprotegidos, estática,dinâmicas exageradas e distorções. A assepsia das novas produções em alta qualidade causa um efeito estéril, frio e até impessoal. E o lo-fi vem na contramão disso. 

Nós quer ir pra Marte, só brincando de fazer marketing. Mas falar de comida no rap não pode. (Faixa: Loopers - Regina)


   A cidade é um personagem protagonista durante todo o CD.  


   Usualmente, a diversidade e a intensidade dos ruídos urbanos são tratadas como “poluição sonora”; caberia, então, numa perspectiva Hi-fi, “limpar” o ambiente e “preservar” ou “resgatar” certos sons, eliminando outros. As cidades e os meios tecnológicos de reprodução sonora criariam “paredes sonoras”, que isolariam os indivíduos do seu próprio ambiente. Ao invés de isolar os indivíduos, o lo-fi propõe fundir a melodia com a própria malha de sons urbanos. A utilização de samples de outras músicas, áudios de Whatsapp, ruídos de conversas ao fundo e sons do trânsito fazem base para que a rima do hip-hop de Nill se desenvolva de maneira orgânica e familiar. 

Já não basta a fila do mercado, não tem caixa postal (...) Vou esperar a chuva passar, sair de casa. O nosso olho brilha e ainda enxuga lágrimas. (Faixa: Wifi - Regina)


   As continuidades e descontinuidades das vivências urbanas tomam corpo em Regina entrelaçadas com as experiências do próprio autor. O equilíbrio do cotidiano da música entra em conflito com a própria instabilidade do Nill.


Um passo atrás as vezes é encontrar o eixo. (Faixa: De novo e de novo - Regina)


   O problema da identidade que afeta o artista é um reflexo dos problemas de uma geração que está sendo criada na pós-modernidade. O autor jamaicano Stuart Hall considera que quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares, pelas imagens de mídia e sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas e desalojadas. Identidades flutuantes, como ele chama, não são necessariamente ruins, entretanto, nós confrontam pelas diferentes possibilidades do que podemos ser. Tanto o Stuart Hall quanto o Nill destacam o consumismo nessa situação. 

Me veja pela tela do Iphone, senão é difícil… Viver sem te ver é difícil, mesmo os nossos assuntos não passando do início. (Faixa: Jovens telas trincadas - Regina)


   A desfragmentação das identidades causada pela mediação tecnológica, é ao mesmo tempo homogeneizada pela globalização do capitalismo tardio. Complicou? Explico melhor. É como se a cultura local fosse apenas uma mera mercadoria, com um valor de mercado - isso vai de produtos de mídias até mão de obra humana - e agora existisse uma “cultura” global que todos nós precisamos nos adaptar de alguma forma. E, apesar de, a globalização ser vendida como algo atemporal e universal, ela é contaminada pelas desigualdades modernas e desequilíbrios de fluxo de poder. O avanço tecnológico não resultou em distribuição social necessariamente, as desigualdades persistem agora atualizadas pelas novas formas de mídias.  

E hoje o Youtube vai pagar o almoço. Hoje é o Youtube que vai pagar o almoço! Só manda avisar… (Faixa: Valete de Copas - Regina)

   O vaporwave pode ser considerado um movimento de contracultura desse efeito globalizador. Esse fenômeno artístico se apropria de elementos da indústria cultural e ressignifica sua mensagem. Você já deve ter visto algum vídeo no Youtube de esculturas de cabeças sobrevoando em fundos degradês junto a garrafas de água Fiji e personagens do jogo Sonic rodando, em um visual que poderia ser facilmente categorizado como “brega”, além de suas músicas desconcertantes que invocam desde sons de sistemas operacionais com vozes robóticas.

   O vaporwave critica à mercantilização desenfreada da cultura ao produzir música com aquilo que nunca se imaginaria, como áudios de comerciais da Pepsi e mixagens grotescas de músicas pop comerciais. Nill ultrapassa isso inserindo no contexto de suas músicas áudios de Whatsapp de amigos e familiares. Além disso, o uso de samples de músicas de elevador e de sistemas operacionais de computadores ultrapassados e videogames dão ao álbum uma estética bastante característica desse movimento. 

Isso também é um pouco culpa da Internet, que criou Zé-Povinho Hi-tec. Matou o amor a moda antiga no mousepad… Deixou os corações mais vazios igual uma locadora de VHS (Faixa: Atari level 2 - Regina)


   Regina é um marco na forma de fazer hip-hop e na forma de falar sobre a vida. Representaria sem dificuldade a minha geração freelancer, que tweeta enquanto almoça e que quase não conhece o espaço onde mora. Um geração que escuta música para abafar os barulhos da cidade para conseguir estudar ou se dedicar a um projeto. Que consegue falar de si mesma para muitos seguidores ininterruptamente, mas não consegue lidar com as próprias ansiedades sem algum tipo de vício. Esse álbum é a voz de muitas vozes que diz: vem comigo, me acompanhe, você não está sozinho nessa.





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