04/04/2018

ALTERED CARBON | 'Aquele que devora a própria cauda' - Mallu


   OROBOROS. Do grego, literalmente, ‘aquele que  devora a própria cauda’. Esse termo é muito vinculado ao conceito de eternidade e seu símbolo tem bastante peso filosófico. Não é a toa que esse é o símbolo da série Altered Carbon, original da Netflix. Este não é um texto de crítica ou resenha da série em si, mas de sua filosofia. 



 ... Até porque a série é uma mistura de retalhos de Neuromancer, Blader Runner, Matrix e um monte de outros filmes cyberpunk. Nada de novo, em resumo. 

 Então vamos falar um pouco sobre Altered Carbon, Ouroboros e o Eterno Retorno.


   O símbolo da cobra mordendo a própria cauda se encaixa com perfeição na série. Altered Carbon se passa em um futuro distópico,  onde a humanidade conseguiu um jeito de burlar a Morte. Todo cidadão que nasce no Protetorado recebe,  com um ano de vida, uma espécie de cartucho em formato de disco, que fica localizado no começo da espinha cervical. Esse cartucho armazena memórias, personalidade, cognição, habilidades, e enfim, tudo o que faz uma pessoa ser quem é. Assim, quando chegada a velhice do corpo as pessoas podem simplesmente trocar de “capa” e continuar vivendo.
    A cobra na abertura trocando de pele antes de morder o próprio rabo, é a espécie de pista de que as pessoas se habituaram a fazer isso indefinidas vezes. Vida eterna.
Parece um sonho tornando realidade. Religiões milenares sobreviveram com a promessa de dar vida eterna para as pessoas. E a tecnologia finalmente conseguira fazer isso. Uma espécie de céu ... ou será inferno? Em seu livro Gaia Ciência, o filósofo Nietzsche deixou tal questionamento:

E se um dia ou uma noite, um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la de novo e 
inúmeras vezes.”
   O autor usa uma metáfora na figura do demônio para causar reflexão sobre o modo como as pessoas vivem. E se o inferno fosse viver eternamente num limbo cíclico de repetição e repetição. O quão cruel isso seria? Podemos levar essa metáfora para algo mais fisicamente literal. 

    Se considerarmos que a quantidade de energia e matéria do universo é finita, então há um número finito de possibilidades de como as coisas podem ser arranjadas. E sendo o tempo infinito em qualquer direção, a mudança torna-se constante. Portanto, já que há uma número finito de arranjos e uma quantidade infinita de tempo, significa que nós já possamos ter vivido essa vida exatamente como é, inúmeras vezes no passado e viveremos também no futuro.

  O personagem Rick Sanchez do desenho Rick & Morty parece ter uma noção bastante clara de que ele próprio é apenas uma versão das muitas versões que existiram e existirão dele mesmo. E isso faz dele um personagem indiferente a própria existência. O fato dele ter acesso infinitas realidades não o faz mais feliz e realizado, pelo contrário, ele destila niilismo, pessimismo e não vê mais sentido na condição humana.

"Diante daquela noite estrelada, eu me abri para a gentil indiferença do universo" - Albert Camus

   Esse parece ser um sentimento recorrente na classe mais rica de Altered Carbon, os chamados Matusas (Matusalém = O homem mais velho da bíblia). Com riquezas de muitas vidas de acúmulo, os Matusas criam vários clones deles mesmos para continuar vivendo indefinidamente. Na série eles são tratados como Deuses e vivem sobre as nuvens em grandes palácios. 

FONTE: https://bit.ly/2q3vuJs

  Ao invés de investirem seu tempo eterno em algo útil, os Matusas se entregam ao hedonismo, ao sexo, drogas e prazeres bizarros. Isso é bastante contrastado com o cristianismo, por exemplo, que vê essa vida como inferior a outra( na série eles são os Neo-católicos). A filosofia de Nietzsche misturada com o cyberpunk é bastante desoladora e nos faz achar que se tivéssemos acesso a essa tecnologia faríamos melhor. Sem a ansiedade pela sobrevivência e o medo da morte, seríamos pessoas mais concentradas em evoluir e talvez conquistar uma paz finalmente estável. 
 
Mas, segundO a teoria Ernest Becker:

“A civilização humana  (mortal) como um todo seria um mecanismo de defesa simbólico de nossa raça, contra a consciência de nossa própria mortalidade. Instinto de sobrevivência coletivo e sofisticado. Algo que construímos de forma simbólica através de nossos 
atos e do que deixamos para o mundo.”

   Podemos chamar isso de propósito ou significado. Tudo que os personagens de Altered Carbon parecem não ter. O fato do corpo não ser mais tão essencial, distancia as pessoas da natureza e da auto-preservação. A ideia de que somos parte do universo, e de que o universo é parte de nós tem um efeito psicológico muito acolhedor. Mesmo que não sejamos peças centrais na lógica dessa realidade, o isolamento do contato da natureza e da matéria do próprio corpo faz com que os personagens se sintam perdidos. 

FONTE: https://bit.ly/2ItImzm

   Nem mesmo se sentem pertencentes ao planeta em que estão. Quanto mais velho é o personagem, menos expressão e vontade de viver ele possui. É interessante notar que essa temática vêm sendo abordada por outras produções sob essa mesma ótica. WestWorld é outro bom exemplo de como as pessoas se tornam egoístas quando superam o obstáculo da morte. O sentimento de falta de propósito é cada vez mais recorrente, e isso se deve ao fato de que a falta de propósito é um sentimento da geração atual. A identificação que produtos como esses causam é assustadora. Altered Carbon trás uma filosofia antiga de modo atualizado. Porque, não importa até onde os humanos se  aventurem no desconhecido, os piores monstros são aqueles que levamos conosco.


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